DIÁLOGO COM A VONTADE


Menina, olha bem pra mim. Faz melhor, olha bem sob os meus olhos. Vê os círculos escuros em volta deles? Chamam-se olheiras, e denotam cansaço. Como assim, o que você tem com isso? Tudo, oras! É por que você não me abandona, um só minuto, que essas famigeradas marcas tomaram a minha expressão.

Você não se cansa, nunca! Me julga por sua régua e exige tudo o tempo todo de mim. Nada é capaz de te convencer a ir embora, pairar em outros prados, galgar outros espaços, flanar por outros ares. Não.... dentro de mim estabeleceu sua casa, e foi do tipo invasão! Tomada hostil. Sem tomar conhecimento de minha capacidade, de minha força, de minha resistência. 

Insensível! Tudo por você, não se incomoda nem por um instante qualquer com minhas dores, aquelas todas outras que geram a física, a única que é suportável, por ser palpável. Eu que me vire, com elas, para te satisfazer. Louca, inconstante, também! Algo como bipolar, pois uma hora você ajuda, muito. Noutra, atrapalha. Muito! De todo o jeito, o que não muda nunca é sua presença. Impõe-se, pouco se lixando para o que eu quero! Você pode mais. Pode tudo, pensa.

E o que dizer de sua crueldade?! Mantém relações íntimas com a consciência, e a ela cutuca, cutuca, até que ela, subjugada, também se dobre à você e venha provocar-me a fazer, agir, realizar, resolver, resistir, brigar, parar, analisar, pensar. Apenas para voltar rapidamente a executar. Parceria dos infernos, viu, garota? Vocês duas unidas, só na conversa, obrigando-me aos doze trabalhos de Hércules. Assim é fácil para você ser o que é. Tão bem falada por aí...

Nunca se aborrece. Apesar de seu senso de humor peculiarmente indecifrável para mim, promove tanta agitação que nunca, jamais, se entedia. E, bem... deve ter estocada em sua despensa tudo quanto é pó natureba (arght) do tipo guaraná, ginseng, erva-do-não-sei-o-quê e raiz de sabe-se-lá, mas que lhe dá uma energia tão intensa que esgota as minhas, sem qualquer pesar! Devia pensar em patentear a fórmula, engarrafar e vender. Ficaria rica em três meses. 

Não sei se você é uma faculdade ou um direito; um talento ou um defeito; um tormento ou uma solução. Não sei se você é uma qualidade, um vício, um engano ou uma salvação. Sei que é injusta, porque eu sei não ser capaz de te definir, no entanto, você é que me define: não fez de mim, então, a fúria dos ventos de agosto?

Eu, totalmente tomada em pensamento, espírito, intenções e conduta, por você, simplesmente não sei como fazer para livrar-me do que me faz sobreviver: a vontade.

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Comentários

  1. Sagaz olhar por dentro dessa nossa natureza humana. Compartilho algumas frases sobre essa fera indomável:

    "Vontade: impulso cego, escuro e vigoroso, sem justiça nem sentido".
    Arthur Schopenhauer

    "A vontade é impotente perante o que está para trás dela. Não poder destruir o tempo, nem a avidez transbordante do tempo, é a angústia mais solitária da vontade".
    Friedrich Nietzsche

    "Onde não falta vontade existe sempre um caminho".
    John Ronald Tolkien

    "O meu corpo é um jardim, a minha vontade o seu jardineiro".
    William Shakespeare

    Abraços sempre muito afetuosos.

    Fábio.

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  2. Excelente!
    Quem é pior?
    A vontade, que nos domina e não vai embora nunca, ou a decisão de se deixar levar pela vontade ou não se deixar levar pela vontade?
    Qualquer que seja a decisão, obviamente muito particular e peculiar, desencadeará desdobramentos diametralmente opostos.
    É uma batalha, literalmente.

    Parabéns, sempre!

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