A CRUZ

[Last Temptation of Christ, clique aqui para ir para o clip]

O trajeto, longo e estreito, acidentado. Ruelas, ladeiras, com seus aclives e declives, pedras sob os pés, e em volta, durante todo o caminho, rostos estranhos de estranhos, com estranhas expressões, passando em flash diante dos olhos, quando é possível enxergar. Sons em cacofonia: risos, sussurros, gritos. Desdém, duvidas, deboche, descrença. Indiferença (não vai conseguir). Satisfação (isso tudo, merecido, bem-feito). Comiseração (nossa, coitado). Atrás do manto enevoado que cobre os olhos, quase fechados de tanto peso, dor, humilhação, cansaço, terror infligido pelo sofrimento físico  - corpo castigado, vergado, que é amparado apenas pelo chão, duro e pedregoso, toda vez que os joelhos o toca - não é possível divisar esperança.

Açoitado impiedosamente, o gosto metálico e doce do sangue é misturado ao sal, do suor e das lágrimas involuntárias, que encontram caminho pela face transtornada até os lábios, inchados e feridos. Não é possível respirar, e ainda assim, naquela algazarra disforme de ruídos e imagens tais, no vácuo do silêncio interior, reverbera O Coração. Músculo vigoroso, capaz, voluntarioso, forte, impulsiona o fluido vital pelas veias. E ouve, turum-turum, ressoando dentro da caixa que é  o próprio peito: o coração bate, e sua batida é alta.

O universo ao redor, então, para. Lentamente, nessa interseção entre dois segundos dentro de um minuto, distingue vozes de preocupação, e carinho. Encontra, dentre a massa disforme de silhuetas tétricas que não têm significado algum, faces de fiel lealdade, transtornadas pela angústia, diante da impotência em dividir consigo suas imensas dores. Impotência diante daquele caminho que deve percorrer, só. Só, e sob o  peso da sua Cruz. O que vê, nesses rostos, é o que compõe todas as células do seu organismo, que (sim, ainda) vive. É o que trata de lembrar que foi predestinado, antes do nascimento, a percorrer em vida: aquele trajeto, e seu objetivo. O que vê, nos rostos, reconhece facilmente, porque faz parte de sua própria matéria carnal: Amor!

E segue. Até o momento em quê, previamente já condenado a pregar-se na Cruz sem sequer pecado algum, morre. Por nós. Só porque nos amou, morreu, e não hesitou.

Cristo, para nós que cremos, morreu assim. Mas essa é a trajetória, o caminho, de  quem está ao nosso lado, ao alcance das nossas mãos, do nosso olhar, de Amor: em algum momento, ninguém escapa das dores, dificuldades, do peso, das aflições. A Cruz ensina: a sina de cumprir o nosso caminho, nos define. Que seja cumprido, portanto, com dignidade.

Da mesma matéria, sangue, suor, lágrimas e compostos químicos e biológicos outros, somos feitos. Mas apenas alguns carregam em suas células, como herança da fé, a matéria (não abstrata) que acalenta, incentiva, alimenta e fortalece, e faz atravessar o Calvário da vida: o Amor.

Agradeço ao Pai, Deus, ao seu Santo Espírito, porque o sacrifício do Cristo, o Filho, e tudo o que sua Cuz e sua ressurreição nos ensina, eu vejo, honrados, dignificados, e profícuo, multiplicando em honra e justiça ao seu redor, em outro.

Nosso Senhor, o Salvador, que nos presenteou com Sua vida para que tenhamos a vida eterna com Deus, me presenteou em vida, com outra(s) vida(s),  por algum momento, observando-me ou seguindo-me numa ladeira, vida junto com a minha vida. Existência(s) que honra(m) todas as graças Divinas e, como filho(s) dileto(s) do mesmo Deus a quem agradeço tal(is) vida(s) existir(em),  é, pelo Ser(es) edificado(s) dentro de sua(s) pele(s), a expressão do orgulho Bendito, do Criador.

Que não haja pedras sob os pés, que não se possa vencer. Que não haja cruz sobre as costas, que não se possa suportar. Que Deus proteja, abençoe e esteja!

Na simbologia da Paixão do Filho, mesmo que não seja possível, a quem é como descrito acima, sempre me ver, pequena e sem expressão, no meio da sua multidão, o meu olhar é de Amor. Humano, Divino, matéria universal, é, sem que eu me dê conta, Minha Fortaleza. 


[Não posso morrer por ti Porque tu vives em mim Então por ti, eu vivo]



Comentários

  1. Belo texto Regina, elegante, sóbrio e certeiro. Como sempre. A Cruz simboliza a minha civilização. Do amor ao próximo por mais que isso possa estar distante da sociedade como um todo. Não sou uma sociedade como um todo. Que comece por mim. Meu pai, minha irmã, o cuidador de meu pai e eu estamos juntos aqui no Leblon. Daqui a pouco peixe e purê de batatas, com todos a mesa. Um pai nosso a nós, aos nossos e ao mundo.
    Feliz Páscoa Regina.

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    1. Feliz Páscoa, Atak, com os que lhe são caros. No fim, é o que temos de melhor, nessa vida: aqueles a quem chamamos "família'. Um beijo!

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  2. Texto profundo e belo. Que a Paz do Senhor esteja com todos nós. Boa Páscoa!

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    1. Amém, Marcinha/Mirtes, brigadinha. Esse saiu sem querer, sem pensar, de madrugada, escrito no celular, luz apagada, em meio à meditação, e enviado como "bom dia". Doeu. Imagina aí, o que seja possível imaginar...

      Beijoca, flor! Tem crônicas do cotidiano da dona Mirtes esse finde?

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  3. Uma oração em prosa. Coloca em profunda meditação. Grato por ter dividido conosco.

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