É DOMINGO: A IMPERFEIÇÃO HUMANA PROVA O DIVINO


Pois, se eu fosse único e independente de qualquer outro, de modo que tivesse de mim mesmo o pouco que me fazia participar do ser perfeito, eu poderia ter de mim, ela mesma razão, todo o resto que sabia faltar-me, e assim ser eu próprio infinito, eterno, imutável, onisciente, onipotente, enfim, ter todas as perfeições que podia observar existirem em Deus. Pois, segundo os raciocínios que acabo de fazer para conhecer a natureza de Deus, na medida em que eu era capaz disso, bastava-me considerar, de todas as coisas cuja ideia havia em mim, se era perfeição ou não possuí-las, e eu tinha certeza de que nenhuma das que marcavam alguma imperfeição estava nele, mas que todas as outras estavam. Assim vi que a dúvida, a inconstância, a tristeza e coisas semelhantes não podiam estar nele, pois eu mesmo teria muita vontade de estar isento delas. Além disso, eu tinha ideias de várias coisas sensíveis e corporais: pois, embora supondo que sonhava, e tudo que via ou imaginava era falso, não podia porém negar que essas ideias existissem verdadeiramente em meu pensamento; mas, como eu já havia reconhecido em mim claramente que a natureza inteligente é distinta da corporal, e considerando que toda composição testemunha dependência, e que a dependência é manifestamente um defeito, julguei daí que não podia ser uma perfeição em Deus ser composto dessas duas naturezas, e que portanto ele não o era; e que, se havia alguns corpos no mundo, ou algumas inteligências ou outras naturezas, que não fossem inteiramente perfeitos, seu ser devia depender do poder de Deus, de tal modo que não poderiam subsistir sem ele um só momento.

Descartes in Discurso do método

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