O HOLOCAUSTO EM UM DIA


Há cerca de 10 anos estive no Museu em Memória do Holocausto, um dos 12 que visitei em Washington DC, do total de 19 museus do fabuloso complexo Smithsonian. Mas o Museu do Holocausto não se enquadra exatamente no verbo "visitar". Ele não define o que significa conhecê-lo. Não é como "visitar" o Aeroespacial, e subequatorialmente procurar ali qualquer referência (e não encontrar nenhuma) a Santos Dumont, depois de se deslumbrar com as Apolos. Nem passear pelo National Gallery, e descobrir que há uma exposição itinerante de Tollouse-Lautrec. Nem chega perto de passear pelas esculturas do Hirshorn Garden e entrar no Museu de História Natural, parecendo que está dentro de uma série de TV. O que acontece quando alguém decide passar pela entrada do Museu do Holocausto é uma experiência além da observação visual. É totalmente sensorial. E é capaz de mudar a vida de uma pessoa.

O prédio é sisudo, bruto, objetivo. Tudo nele é feito e conduzido para que o visitante use os sentidos, muito além de basicamente a visão, como expectador. É para perceber bem essa parte trágica, triste e desumana da história do mundo.  Ao entrar, todos recebem um passaporte que conta a história de uma vítima do Holocausto. A exposição permanente é dividida em três partes, O Assalto Nazista, A Solução Final e O Último Capítulo, e o percurso começa a partir da exposição "Remember the Children: Daniel’s Story". Ali penetra-se na história desde os primeiros sons de uma casa qualquer, pratos, talheres, passos, risos das crianças. A história do menino Daniel vai sendo contada pelas páginas do seu diário à medida que se caminha por sua "casa". A mudança de ambiente para o gueto, com outros sons, outros cheiros, a diferença de altura e até de umidade é o passo seguinte, e algo que penetra na memória de uma forma inesquecível.


De tudo o que jamais esquecerei saltam da razão o cuidado e a competência na preservação do acervo e na forma de apresentá-lo. Os vídeos com as experiências médicas usando judeus como cobaias, são assistidos em áreas cercadas muretas, cuja altura varia de acordo com a faixa etária recomendada para que crianças não vejam os horrores que algumas pessoas são capazes de imputar a outros seres humanos. E da memória dos afetos, aquilo que Nietzsche descreveu como sendo tudo o que nos afeta, salta como inesquecível o sentimento despertado em mim, naquele momento.

Tudo que experimentei e assisti pelo caminho, até então, havia me deixado em alerta, abismada sim, por mais que eu já conhecesse grande parte da história. Mas naquele espaço cheio de cercadinhos contendo as telas onde passam os vídeos, é onde me vi chocada além do que consigo descrever. Porém, ainda era uma fase de revolta, pura, animal. Não me envergonho em reconhecer que seria quase impossível não matar um monstro nazista daqueles, se me deparasse, cara a cara com ele naquele instante.

Aí, imediatamente depois, então, vem a dor. Dor na alma que o corpo sente e reage instantaneamente ao entrar no boxcar, nada mais que uma caixa de madeira que era um dos vagões, dos muitos comboios que transportavam os judeus pelas Ferrovias do Holocausto, rumo à Solução Final. 

Depois do vagão, a câmara de gás. Nem todos conseguem entrar dentro dela (a exposição, repito, é sensorial, penetra-se nela para que a história penetre em nós), onde, antes da porta, os homens, mulheres e crianças judeus despiam-se e dobravam, obedientemente, as próprias roupas para adentrarem rumo à morte calçados com os sapatos nos pés. Ali o rosto se inunda das lágrimas que ninguém segura, quando os olhos que estavam na câmara escura se acostumam com a claridade e vêem os sapatos daqueles que se tornaram pó, cobertos de cinza, envoltos pelo cheiro delas. Nunca serei capaz de me esquecer disso. Nunca. Mas antes do que vi, não esquecerei do que senti emudecer dentro de mim. O horror é capaz de calar, ainda que por um instante, a fúria. Duvido que alguém consiga gritar lembrando-se da revolta que sentiu momentos antes. O terror dessa dor entre cinzas e sapatos fala alto em absoluto silêncio.


Na última parte do caminho tem a informação do destino de todos que foram vítimas do Holocausto. Aquele passaporte recebido no início, que personaliza para cada visitante os horrores do nazismo é fechado ao saber o que ocorreu com aquela pessoa. Johanna, a minha persona naquele tour, seu marido e uma de suas filhas não sobreviveram a Auschwitz. Sua outra filha, separada da família no gueto, foi libertada do campo de Bergen-Belsen em 1945 e emigrou para a América em 1947. 

Depois do "encerramento", você precisa se reencontrar consigo mesmo antes se sair. Ao final há uma capela ecumênica, apenas um salão estrategicamente iluminado por luz natural e velas, uma parada necessária para que as emoções, as tensões do corpo e da mente se reconciliem com o equilíbrio. É respirando ali, tomando a percepção de seus sentidos de volta - porque se está vivo - é que se tem a mais completa consciência de que todos nascemos pessoas, sim, mas alguns nascem sem qualquer traço de humanidade. Nascem sem o sentimento da alma. Foi sentada ali em um banco de madeira, ouvindo as batidas do meu coração em meu peito, que decidi nunca esquecer. 

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