FIM DE TARDE


“A Virgem está pálida e contempla o menino. O que dizer daquela expressão de perplexidade que foi vista uma única vez num semblante humano? Porque o Cristo é o seu filho, a carne da sua carne, e o fruto do seu ventre. Ela o carregou por nove meses, vai lhe oferecer o seio e o seu leite se tornará o sangue de Deus.
Em alguns momentos a tentação é tão forte que esquece que é o Filho de Deus. Ela o aperta em seus braços e sussura: Meu filhinho! Mas, em outros momentos, imóvel pensa: Deus está ali. E é tomada por uma admiração religiosa por esse Deus mudo, por esse menino que, de uma certa forma, causa medo.
Todas as mães, por um instante, ficam transtornadas diante daquele fragmento rebelde da sua própria carne que é um (seu) filho. E se sentem exiladas diante dessa nova vida feita da (sua) própria vida, mas que contém outros pensamentos.
Mas nenhuma criança foi arrancada de sua mãe de um modo tão cruel e rápido porque é Deus e supera em tudo o que ela poderia imaginar. E é uma dura provação para uma mãe ter vergonha de si mesma e da sua condição humana diante de seu filho.
Mas creio que deve ter havido outros momentos, rápidos e fugazes, nos quais ela sente que o Cristo é o seu filho, a sua criança, e que é Deus. Ela o contempla e pensa: este Deus é o meu filho. Esta carne é a minha carne, é feito de mim, tem os meus olhos! E a forma da sua boca é semelhante à minha boca. Ele se parece comigo. É Deus e se parece comigo.
Nenhuma mulher teve a sorte de ter o seu Deus só para si. Um Deus menino que se pode abraçar e cobrir de beijos. Um Deus quente, que sorri, que respira. Um Deus que está vivo e se pode tocar!
É nesses momentos que eu pintaria Maria se eu fosse pintor.
E José? José, eu não o pintaria. Mostraria apenas uma sombra no fundo do celeiro e dois olhos brilhantes. Pois não sei o que dizer de José, e José não sabe o que dizer de si mesmo. Adora e está feliz por adorar e se sente um pouco em exílio. Creio que sofra sem confessar. Sofre porque vê o quanto a mulher que ama se parece com Deus, o quanto está perto de Deus. Pois Deus estourou como uma bomba na intimidade dessa família. José e Maria estão separados para sempre por esse incêndio de luz. E toda a vida de José, imagino, será para aprender a aceitar.”

(Os filhos do trovão, de Jean-Paul Sartre)

Comentários

  1. Velvet, você anda cavando, hein?

    Que face de Sartre é essa?

    Lembrou-me a passagem do jovem rico que encontra com Jesus e diz para este coisas tão maravilhosas e certas, mas, ainda que conseguisse atingir a verdade, não foi por esta atingido... e o jovem rico sai, então, triste daquele encontro com Jesus.

    Sartre já havia escrito "A náusea" antes do texto de teatro acima. Sarte também já havia publicado que era ateu e já havia definido as bases de sua filosofia existencialista.

    Mas, no período em que compôs essa peça de teatro, ele estava preso num campo de concentração alemão! O que não faz uma prisão com um homem, hein? Até o mais "durão" dos ateus...

    Contudo, independente dessas informações biográficas, o texto é belo, sublime, poético e mostra como que qualquer um pode atingir a verdade, ainda que não seja atingido por esta.

    Parabéns, Velvet.

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  2. Pois é... Sartre se dizia ateu.

    Já pensou se não fosse?

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