SUS: SERVIÇO DE DOENÇA - PARTE VI



Hoje, mostro pequenas ilustrações do cotidiano de fraudes no SUS:

A dona Maria acorda em Queimados (perto de Nova Iguaçu), 4 da manhã, e prepara a marmita do marido. O marido sai para trabalhar e a dona Maria acorda o filho de 2 anos e dá um café da manhã para o guri. Coloca no colo e vai para o posto de saúde perto de casa. Chega às 5 e pega número para a Pediatria. Chega na consulta e diz que o garoto está tossindo de forma estranha! A doutora examina e não encontra nada, mas na dúvida, prescreve remédio para tosse. A Maria sai do posto e joga a receita no lixo. Pega um ônibus e vai para Nova Iguaçu, Hospital da Posse. Chegando lá, repete a história no setor de SPA (Serviço de Pronto Atendimento) e novamente o Júnior é atendido. Dessa vez o doutor acha uma sinusite e passa nebulização e Salbutamol, que é administrado na sala de hidratação e liberado.

Na fila a Maria encontra a dona Edna que lhe informa que tem uns pediatras novos no Hospital Infantil em Caxias e as duas rumam à Caxias. Entram na fila do Pronto Socorro, passam na triagem, sempre contando “histórias”. Dessa vez a doutora acha que pode ser pneumonia mas como estão sem Raios-X, encaminha a criança para o Hospital Getúlio Vargas. La faz o RX, mas não tem pneumonia! O médico prescreve expectorantes e libera a criança. A Maria pega remédios na farmácia do Hospital e os vende na fila pra a Edna. Já é 1 da tarde e o Júnior já passou por 4 médicos.
A Maria olha para o relógio e vê que dá tempo para dar um pulo ao Souza Aguiar, no Centro do Rio. Chega lá e novamente conta história. O doutor acha que pode ser pneumonia e pede RX sem saber que o guri já fora radiografado. Exames de sangue evidenciam uma discreta anemia e o RX (de péssimo padrão) mostra que poderia haver uma pneumonia de “base” no Júnior. O doutor prescreve antibióticos e o encaminha para o ambulatório mais perto de casa. A Dona Maria olha para o relógio e às 15 horas se dá por satisfeita, ruma para casa a tempo de fazer o jantar para o marido que chega em casa às 18. Guarda o encaminhamento que lhe garante o atendimento mais cedo, na manhã seguinte, e vai dormir sonhando com uma ida ao Hospital Miguel Couto no Leblon.

Eu garanto a vocês que igual à dona Maria, tem um pequeno exército de umas 100 mil mulheres que fazem essa peregrinação diariamente. Não há sistema de saúde que sustente isso. Nem está previsto em qualquer dotação orçamentária de uma prefeitura séria. Junte-se a esse dado, outro que diz que no país são geradas 80 mil consultas de pré natal por DIA. Dá para imaginar o tamanho do problema, não é?


Pelo outro lado, tem o provedor/gestor do sistema, que são as Secretarias de Saúde. Aprendemos que as Secretarias recebem as verbas em contas especiais e controladas pelos conselhos municipais. Material de consumo, remédios e pessoal de apoio saem dessa verba. A verba é orçada de acordo com o tamanho do município e a quantidade de serviços em ação de saúde que esse município oferece. Pois bem, para montar um serviço em saúde é necessário um local, infra-estrutura e material para trabalhar. Na saúde publica temos os mesmos cuidados da medicina privada e o medo de contaminação é tão grande quanto.


Material de consumo abrange tudo; gaze, esparadrapo, compressas, fios de sutura, abaixadores de língua, fraldas, e uma lista enorme de outros materiais. Esse material é fornecido por privados que “licitam” numa concorrência pública e passam a receber pelos serviços prestados. A mesma coisa acontece com os medicamentos. Todo posto de saúde tem um setor de “Dispensação de Remedios” que atendem os programas. O camarada é atendido e precisa de anti-hipertensivos, passa na farmácia e recebe uma cota, gratuitamente. Toma os remédios e volta para nova consulta para ou pegar mais ou receber alta.


Aqui, acontecem os “clássicos” do roubo na rede:

Numa Secretaria mal intencionada (a vasta maioria, pelo pais afora), as licitações são fraudadas. Jogo de cartas marcadas. Conto apenas o que vi. Por exemplo: numa prefeitura, a secretaria licitou compras de Dipirona, um analgésico comum de uso hospitalar corriqueiro. A ampola de Dipirona no mercado custa menos de 10 centavos. A prefeitura comprou cada ampola por 4,30 Reais! Estamos falando de 40 mil ampolas licitadas! Outra prefeitura licitou anti-hipertensivos, o Propanolol, e para cobrir a necessidade do programa de Hipertensão eram necessários 100 mil comprimidos/mês. Licitação válida por 6 meses de fornecimento. Pois bem, ganhou firma X que tocou o preço 80% para cima. Entregava apenas 50% do pedido e o secretário assinava o recebimento de 100% do pedido/Mês. A diferença era dividida. Resultado: faltava anti-hipertensivos para o Programa da Hipertensão! Soube depois que uns 6% dos pacientes desse programa, daquela unidade de saúde, não iam mais às consultas, faleceram.

Um vizinho meu tinha uma firma de fornecimento de materiais e insumos hospitalares. Fornecia pra o antigo INAMPS. Uma vez me confessou que um hospital licitou luvas cirúrgicas. Ele entrou na concorrência e ganhou. Era para fornecer 10 mil pares por mês, por 3 meses.

O custo de um par de luvas chinesas não passa de 10 centavos, o INAMPS comprou, na época, por U$ 4,90 o par. Não entregou 6 mil pares, recebeu integral e ainda pagou uma viagem para Aruba para o diretor do Hospital e a amante deste!

Fui a alguns congressos nos EUA, há muitos anos atrás. Um deles em Las Vegas. Uma noite, na companhia de outros colegas brasileiros, fomos às mesas, afinal, ninguém é de ferro. Vi um figurão carioca sentado numa mesa jogando poker e do lado dele, um camarada que me era conhecido. Confirmei a identidade com outro colega, era fornecedor de material cirúrgico. O figurão era chefe de serviço num grande hospital do INAMPS e jogava poker. O fornecedor deixou uma maleta com 50 mil U$ ao lado do figurão e foi embora. O tal figurão jogou até as 5 da manhã e levou a maleta com o que restou (se é que restou alguma coisa). Dois meses depois, li num jornal que o tal hospital do figurão havia comprado 6 milhões de dólares de material cirúrgico, da firma do camarada da maleta de Las Vegas.

Um diretor de um hospital da baixada Fluminense namorava a “chefe” da Farmácia. Os dois ensacavam 10-15% de tudo que entrava pela farmácia, isso de noitinha. Gaze, álcool, éter, luvas, remédios, equipos de soro, soro, e milhares de itens outros. Os sacos de lixo preto eram colocados ao lado dos sacos de lixo normais, azuis. O caminhão de lixo recolhia o lixo azul e colocava na caçamba, os sacos pretos iam na cabine. Passando pela rua X, o caminhão de lixo parava e deixava os sacos pretos na porta de uma casa. Uma buzinada, e uma pessoa da casa recolhia os sacos pretos. O conteúdo era então levado na noite seguinte, para hospitais privados em Campo Grande, Bangú e Santa Cruz. Lucro dividido entre o diretor e a namoradinha.


Numa sexta-feira um caminhão da prefeitura do Rio encosta num hospital público e descarrega um tomógrafo. Ninguém assinou o recebimento. Algumas horas depois outro caminhão encosta e leva o tomógrafo, e nunca mais se ouviu falar do aparelho, de valor estimado, na época, em 1 milhão de U$. Houve uma vez um contrato de manutenção de ambulâncias no INAMPS-RJ, o licitado para cada viatura comprava 2 novas por ano!

Num posto de saúde na região serrana, embalavam cocaína na farmácia, no período noturno e melhor, a ambulância da unidade fazia a distribuição.

Agora vocês imaginem o tamanho do “Movimento Formiga”, que é o movimento de funcionários que levam para fora das unidades onde trabalham, 10 frascos ou ampolas de qualquer coisa, guardam em casa e quando completam caixas desse qualquer coisa, vende para o hospital particular onde trabalha, ou onde o vizinho trabalha.

Um contrato de reposição de terceirizados (faxina, administrativos) custava à prefeitura algo em torno de 350 mil reais por mês. Nesse contrato havia uma cláusula de multa por serviços mal executados. Pois bem, o secretário multou a firma 3 meses consecutivamente em 20% conforme previsto no contrato. O dono da firma procurou o secretário e pediu o fim das multas, dando um “mensalinho” de 25 mil por mês, por fora.

Uma firma fornecia alimentos para a secretaria de saúde de uma determinada prefeitura, e lá pelas tantas foi feito um levantamento sobre do que se tratava, na verdade. Entre outras coisas, apurou-se que a prefeitura pagava 14,50 reais o kg de queijo prato enquanto o preço de supermercado era de 1,20 reais (logo após a virada do plano real).

Na mesma linha, em outra prefeitura, estudaram o preço do café fornecido à secretaria municipal de saúde. Na época pagavam 4 reais o kilo, enquanto o mercado vendia por 1,50. Mas o que chamou a atenção dos investigadores era que o café era procedente da fazenda de um ex prefeito. Apuraram ainda que essa fazenda não tinha área física pra fazer tanto café. O café foi analisado e apuraram que, além de não ter Selo de Inspeção Federal, o café era batizado com 40% de serragem.

Numa outra prefeitura, resolveram terceirizar parte do quadro de médicos. Uma cooperativa foi contratada. O contrato era de aproximadamente 400 mil Reais por mês, mas o que chamava atenção é que a “taxa de administração” era de 75 mil por mês!

Lunarscape, músico-médico carioca da Dinamarca, que é escritor do blog pelas mãos do destino.

Arquivo:
SUS: SERVIÇOS DE DOENÇA


Comentários

  1. Por tudo que o Lunar escreveu e por algumas coisitas a mais que houve um boicote geral ao cartão SUS. Com ele, se saberia exatamente quantos procedimentos eram feitos e em quantas pessoas, o município de origem delas e se elas já teriam ou não passado por outros profissionais.
    Ou seja, iria se tentar organizar um pouco esta zona.

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  2. Mercia Maria Almeida Neves26/08/11, 20:40

    Dr. o relato das senhoras é tão deprimente quanto aos figurões,às namoradinhas, às farmácias,às licitações fraudulentas.A saúde doente, o ser-humano doente.Fica as indagações,visto que a enfermidade está no DNA.
    Ainda assim,há de ser ter meios para combater o mal.Ainda nos resta a indignação,motivo este do médico relatar tantos fatos com tantos detalhes.Há de se ter, não sou especialista em política,em economia,ao contrário, sou amadora, mas o sentimento que corrói aí no artigo esse mesmo corrói aqui.Há de se ter o antídoto.

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  3. Outra aula. E coisa como essa aparecem na mídia com pontas de icebergs. E ninguém, absolutamente ninguém vai preso.

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  4. Amigos, conto apenas o que vi. Tenho 30 anos de experiencia no SUS, saude publica. É um nojo. é brasileiro roubando e matando brasileiro...Foda.

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  5. Terrível,meu amigo Lunar!

    É inacreditável a que ponto chega o brasileiro!Ele vive a "Lei do Gérson", que quer levar vantagem em tudo, mesmo às custas de vidas humanas!

    E o imbecil, qdo é pego c/ a mão na massa,diz:"Ah, boba, esse governo é rico,não sou eu quem paga"! Idiota!Nem sabe qto o governo enfia a mão em seu bolso,e que é dele sim o dinheiro!

    De uma maneira geral,acho que sei bem do que vc está falando,pq eu tb era da área da saúde e vi coisas inacreditáveis!
    É uma máfia dentro da outra máfia!

    Mas nossa amiga Márcia,a Formiguinha,levantou um pedacinho do pano que encobre todas essa sujeira: o cartão SUS!

    Aqui em SP,na minha região, ele é mto levado a sério! É mto difícil as mulheres ficarem perambulando pelos Postos de saúde, pois é tudo informatizado e o cartão SUS funciona p/ quebrar um pouco essa gandaia!

    Não vejo mta saída a curto prazo p/ a solução dessa vergonha.
    Só c/ a educação desse povo ignorante que vive a Lei do Gérson, já seria um bom começo para tentar estancar a impunidade da Máfia!

    Gde bj a vc! Adorei seu texto!

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