LAURA E O GUEPARDO



Para Laura nada muda, enquanto não se estabelece, por uma das partes, claramente, que sim. Não mudam as coisas inerentes às 24 horas de um dia pelo levantar do sol no horizonte. Tivesse a luz do sol língua e não olhos ela diria que as pessoas permanecem aonde escolhem, entre o claro e o escuro do dia inteiro. A sombra não aparta o dia, como não transforma as pessoas em nada pior ou melhor apenas pelo deitar da claridade no chão, quando esse dia anoitece. Luzes e sombras vivem dentro de cada um, um firmamento imutável. A consciência de Laura não espera, não almeja, por impossível que seja (é muito racional), apenas por dias cheios de luz, nem se forem cheios de escuridão. Vive de absorver tudo, todas as nuances do dia, sem economia.

A sombra e a luz de um dia são as metáforas do momento que vive Laura. Permitir-se todo um sentir, esse viajar entre o inusitado e o que já sabe bem, correr o risco ao mesmo tempo em que se depara com a grande tranquilidade da sua consciência que vem do autoconhecimento, deu-lhe o destemor de mergulhar ao conhecer o Rui.

Para despertar os interesses de Laura, apenas um homem que realmente saiba viver e que não escolhe alguém com quem jamais poderia fazer isso, preservando-se em sua individualidade, seus gostos, suas vontades. Um homem que escolhe uma mulher sem deixar-se levar apenas por um murmúrio genético, e sabe, racionalmente, que “relacionamento” não é, não precisa nem deve ser sinônimo de impedimentos dessa vida que gosta de bem viver. Esse é o único tipo de homem capaz de deixá-la à vontade para que ela o procure a fim de dizer o que sente vontade. Ele sabe segurar uma mulher segura de si, principalmente agora quando ela está totalmente insegura de si. Este é o momento de Laura, e este é o Rui.

Conhecer Rui tendo-lhe aberto as janelas sem temor algum de entregar-lhe, caso ele queira, todas as chaves, é para Laura como ouvir a mesma música sem parar, com a tecla “repeat”, aquela música intoxicante que se gosta muito e não enjoa. Estar com Rui dá a Laura a mesma sensação que uma boa ducha de chuva no calor sufocante. Cada dia, cada olhar, cada toque, cada intenção acidental que resulta num roçar de mãos, braços – e corpos, nas manhãs divididas - têm em si algo de tão erótico e ao mesmo tempo tão tocante, simples, descomplicado, sem exageros do antes nem perguntas do depois. Porque estar com Rui realmente significa algo, não é nada vulgar. Não traz a culpa nem leva a vergonha.

Há quem diga, e Rui lhe disse isso uma vez – na última conversa em que comentou porque nem sempre a responde, não lida com as palavras da mesma forma que Laura, o que o faz adorar tudo o que ela lhe diz - que ela é “romântica”. Não é. É afetuosa, carinhosa, intensa e não tem pudores de dizer o que sente desde que não seja obrigada a fazê-lo. Gosta que Rui saiba exatamente o que pensa, como e quando pensa o quê. Não tem mistérios, nem segredos, nem jogos de palavras ou outro de qualquer natureza. Rejeita o rótulo de romantismo, pois viver o que “para ser uma história, precisa dois”, é para Laura um sonho que nunca chegara a ter. Não é mulher de viver fora do seu conceito de mundo real. Nenhuma parte dela teme tampouco quer tudo isso assim, simplesmente porque Laura nunca tem pesadelos por medo de extraterrestres nem sonhos fantásticos sobre ser dona de um avião, por exemplo. Pragmática, sabe que essas coisas dos sonhos ou não existem (como ETs) ou são tão reais (como aviões) que não há necessidade nem de perder tempo temendo a primeira nem de desejar possuir a segunda.

Dessa forma, com esse homem real que conheceu, Rui, viver uma “história a dois" não é nem uma impossibilidade nem uma possibilidade que jamais tivesse sonhado em sua cabeça. Mas aconteceu... Eles se conheceram. Os primeiros encontros fizeram Laura sentir uma vertigem. Em todos os subsequentes, que para ela ainda são os primeiros mesmo se o último representar o último – e isso quem determina não é Laura – ela sente a mesma coisa. Um não respirar, suspenso no ar. Rui tem esse efeito sobre ela.

Desde o primeiro encontro involuntário, passando pelo segundo, a convite de Rui (ainda bem que ele a convidou, pensa sempre) Laura sentiu um nervoso contido aprisionado na capa de gelo que ergueu exatamente porque estava perto dele – ela sabia, desde que sua visão lateral o percebeu chegar no restaurante do amigo em comum, naquela noite de domingo, que a chamada Senhora Iceberg já não existia mais como uma possibilidade na presença do calor de Rui. Estar com esse homem, desde então, é como se alguém lhe oferecesse, toda vez, a oportunidade de brincar com um felino enorme e não domesticado, mas que não apresenta-se junto dela com o instinto do caçador implacável e faminto: ele está bem, sossegado, e apesar de indomável, não tem necessidade alguma de atacar, portanto não a vê como ameaça e nem como uma presa. Estar com o Rui é como estar com tigre, ou um guepardo, algo que Laura jamais pensou ver de perto, quanto mais, estar junto, tocar, acariciar, sorrir para ele, sorrir com dele. E Laura o fez e fez mais que isso, porque foi possível. E é real.

Laura, então, quer contar essas coisas que sente a Rui. Ela sabe bem porquê, e que esse desejo surgiu de uma pergunta. Sabe das razões para sentir tanta vontade de mostrar-se. Não sabe o que Rui pensará a respeito dela, a partir daí, e não quer pensar a respeito disso, senão corre o risco de não lhe contar mais. A única certeza que Laura tem, e isso apenas Rui pode lhe tirar com a franqueza que ela espera dele, é que Rui é exatamente como ela descreve, um homem capaz de saber dela, das coisas dela, dos sentimentos dela sem se assustar, sem correr, sem se entocar, tampouco sem sentir-se enjaulado e muito menos, encabulado. Ela espera que Rui sinta-se envaidecido, pois só um homem de grande “porte” seria capaz de despertar tudo o que ela descobriu em si, e lhe diz.

Desde que “acariciou o guepardo”, Laura jamais foi dormir mais entristecida ou pior do que quando acordou. Rui lhe deu o prazer e a leveza de ver as sombras e as luzes de um dia completo, com todas as intensidades que cada uma delas possui. Rui a faz sorrir, mesmo quando chora. Laura sabe que Rui pode tudo dela saber, mesmo surpreendido, que ainda assim não a temerá. Ele é o guepardo. E sabe que ela não é nem a domadora nem a presa. Apenas, é Laura junto a Rui, e nada há o que Rui possa recear. O guepardo, o grande felino, pode bem receber as carícias de Laura.

Comentários

  1. SEM PAPÉIS FIGURATIVOS À CUMPRIR, AS PERSONAGENS NÃO DESEMPENHAM ROTEIROS E O ETÉRIO E O CONSTANTE NÃO POSSUEM UMA DIALÉTICA MUITO PRECISA, POR QUE NÃO NECESSITA SER UM OBJETO CONTEMPLATIVO DE NATUREZA FUNCIONAL.

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  2. Guepardo é bom demais da conta! Esta nem Freud... rs
    No mais, texto delicioso como sempre.

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  3. Laura (seria um alterego?) vê em Rui a figura do felino que conservará a serenidade diante de tantos tumultos que a afligem porque confia em sua própria força. Não foge e também não ataca, pois sabe que a presa (que espera ser atacada) está ali por sua própria vontade. E Laura cria uma relação de confiança e segurança com Rui, o guepardo.

    Lembrou-me a cena do filme "Dragão Vermelho" (acho que é esse) em que a moça cega acaricia um tigre sedado sobre uma maca enquanto é conduzida pelo psicopata da trama. Ela, cega e indefesa, tocando um animal que é a própria tradução da força. Lembrou-me muito mesmo essa cena impactante do filme.

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  4. Cara amiga Regina,
    Mais uma vez você se superou, parabéns !!
    Acariciar o Guepardo é uma metáfora incrível !!
    Felizes dos homens que encontram a sua Laura na vida ....
    Sem dúvida um conto excelente, que merece ser divulgado ....
    Um grande abraço deste felino sexagenário !!
    Cheers !!!!

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