PARA QUEM JÁ LEU CLARICE
Por Denilson Cicote
O momento epifânico é uma experiência crucial na obra clariciana. A epifania (do grego ephiphancia, "aparição", "manifestação") pode referir-se a dois fenômenos diferentes. No plano místico-religioso, diz respeito ao aparecimento de uma divindade ou de uma manifestação espiritual; a palavra surge descrevendo a aparição de Cristo aos gentios. No plano literário, refere-se à súbita iluminação advinda das situações cotidianas e dos gestos mais insignificantes. O êxtase decorrente de tal percepção atordoante geralmente é fugaz, mas desvela um saber inusitado, uma vivência de totalidade grandiosa, que contrasta com o elemento prosaico e banal que a motivou. Do que já vimos da obra da autora, é do próprio habitat familiar que irrompe a revelação epifânica, expulsando as personagens de uma familiaridade asseguradora. A vivência pode ser seguida dos sentimentos mais paradoxais: náusea, fascínio, angústia, exaltação etc. ( FOLHA EXPLICA – Clarice Lispector – Yudith Rosenbaum, pg. 68/69)
Clarice Lispector constrói a partir de acontecimentos e personagens prosaicos e rotineiros uma forte narrativa de viés psicológico. A riqueza expressiva de seus contos não está na ação que se desenvolve no mundo exterior. Este serve apenas de moldura para explicitar o confronto interno dos personagens. “Laços de Família” não chega sequer a narrar um dia completo, mas apenas fragmentos carregados de significado e significações.
Em um primeiro olhar os personagens enquadrar-se-iam mais no que é chamado em literatura de “tipos”. Não são pessoas atormentadas que caracterizam certos autores de narrativa psicológica. Não são desajustados mentalmente, no limiar entre razão e loucura. São pessoas comuns, forçosamente adaptadas às convenções, às regras socialmente estabelecidas. Daí vem o conflito; A incapacidade de ajustar os sentimentos.
Tudo tem início quando Catarina, externamente filha exemplar conduz sua mãe Severina a estação ferroviária, onde deve retornar para casa após uma temporada de duas semanas na casa da filha. Usando o estilo indireto livre, o deslocamento da narrativa e a onisciência seletiva (Selective omniscence);
Clarice inicia por mostrar o divertimento irônico de Catarina frente ao conflito da mãe e do marido. São os primeiros sinais de “laços” construídos conforme as convenções;“a onisciência do narrador é o percurso retórico utilizado para inserir o leitor dentro do universo psicológico das personagens. Clarice, utilizando-se de uma linguagem conotadas de imagens insólitas...”“...no primeiro planos, o leitor é envolvido por essa linguagem e levado a conhecer a fragilidade dos laços de família” ( O percurso do leitor nos Laços de Família – Lurdes Teles, Profª Ms e Doutoranda em teoria da literatura.)
“Durante as duas semanas de visitas da velha, os dois mal se haviam suportado; os bons dias e as boas tardes soavam a cada momento com uma delicadeza cautelosa que a fazia querer rir. Mas eis que na hota da despedida, antes de entrarem no Taxi, a mãe se transformara em sogra exemplar e o marido se tornara o bom genro." (Laços de Família)
Sua vida exterior contrasta com a economia de gestos e emoções exteriores. Mesmo seu riso é totalmente interiorizado e isso causa um estranhamento ao leitor. Na sequencia mãe e filha, por uma freada súbita, são lançadas uma contra a outra. Essa intimidade forçada desencadeará o primeiro momento epifânico. Vem a tona sentimentos há muito escondidos. Mesmo as relações de mãe e filha estão sujeitas as convenções. Nunca realmente haviam se abraçado e beijado como mãe e filha. Possuía laços emotivos e realmente familiares com o pai. A viagem introspectiva torna-se mais profunda e Clarice usa palavras como “Sangue”, “vida e repugnância” ao se referir a sentimentos que a mãe despertava. Proponho que este seja apenas o primeiro momento epifânico do conto.. O banal encontro de corpos desencadeia lembranças e sentimentos doloridos, e Clarice nos transporta para dentro do texto usando o deslocamento da perspectiva do narrador e a pontuação. Parágrafos curtos, o excesso de virgulas ressaltando a indecisão e angustia. A Rememoração. Podemos inferir pelo texto que a mãe também foi tomada por sentimentos ambíguos. Porem o narrador implícito não está preocupado em desvela-los. É Co motor da narrativa. A mãe, mesmo sentindo o desconforto existencial frente ao papel de mãe, retoma-o rapidamente. Está por demais afeita as convenções.
Os diálogos dos personagens contratam também com os momentos de introspecção de Catarina.. São maiores, mas não é só isso; os diálogos também são curtos e convencionais demais. Ao se ver sozinha adquire a autoconfiança. O narrador onisciente toma às rédeas para mostrar do alto o momento em que Catarina, livre e confiante se identifica com o mundo a sua volta, vivo porque caótico, desorganizado,
sujo. Descreve demoradamente os lugar, as pessoas, o trânsito. Essa tendência de Clarice ao descrever com minúcias os locais intensifica a impressão no leitor e foi assim descrita acertadamente por Gilda de Melo e Souza.
“Não será difícil apontar na literatura feminina a vocação da minúcia, o apego ao detalhe sensível na transição do real, características que segundo Simone de Beavouir, derivam da posição social da mulher. Ligada aos objetos e deles dependendo, presa ao tempo, em cujo ritmo se sabe fisiologicamente inscrita, a mulher desenvolve um temperamento concreto e terreno, movendo-se como coisa em um universo de coisas, como fração de tempo em um universo temporal(...) Assim, o universo feminino é um universo de lembrança ou de espera, tudo vivendo não de um sentido imanente mas de um valor atribuído. E como não lhe permitem à paisagem que se desdobra para lá da janela aberta, a mulher procura sentido no espaço confinado em que a vida se encerra: o quarto com os objetos o jardim com as flores, o passeio curto que se dá do rio até a cerca. A visão que constrói é por isso uma visão de míope, e no terreno que o olhar baixo abrange, as coisas muito próximas adquirem uma nitidez de contornos”
Algo mudou em Catarina. “nada impediria essa pequena mulher” diz o texto a esta altura. Está pronta ara chocar-se contra o mundo das aparências e convenções. É nessa disposição de espirito que Catarina chega em seu apartamento bem arrumado, apartamento classe média alta, de engenheiro. Passam pelo marido, que sentado à escrivaninha, “tomava o seu sábado” e se dirige ao quarto do filho. O alivio de Catarina parece arrefecer um pouco seu ímpeto.Sente-se reconfortada pela visão do filho “magro e nervoso” e pode sentir os laços que os une como “calor bom”. Mas algo a desperta novamente. Assim como ela na plataforma da estação o menino diz “mamãe”. Era a primeira vez que fazia isso sem estar pedindo nada. A forte impressão que isso lhe causa e a forma como ela tenta contar o sucedido dentro das rígidas convenções mostra que também este é um momento de epifania. Este é seu momento há muito perdido entre ela e a mãe.
“Mamãe, disse a mulher. Que coisa tinham esquecido de dizer uma à outra? E agora era tarde demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim; sou tua mãe, Catarina e ela deveria ter respondido; “e eu sou tua filha”(Laços de Família)
Este segundo momento da personagem consegue faze-la finalmente externar seus sentimentos. O riso saiu-lhe quebrado, áspero. O menino a chama de feia. Catarina não parece disposta a deixar que esse laço se rompa, pois não é como os outros. Este é um laço verdadeiramente emocional. Leva o menino a um passeio.
Antônio, o marido, percebe-se então sozinho. Caminha até a janela e os vê. A forma dela andar forte e depressa o faz adivinhar seus traços duros no rosto. Também este é um momento epifânico. Abandonado, “vê” seu mundo interior. É um ser atado as convenções. Sabia que a fuga da mulher era uma fuga de seu mundo bem arrumado onde ele ocupava o lugar central da vida familiar. Não nutria amor intenso por Catarina. E mesmo desprezando “aqueles olhos sonsos” não quer mudar. Preso ao seu mundo, o que manter. Decide que depois do jantar irão ao cinema. Este é o máximo que se permite de mudança.
Denilson Cicote é o @deci_cote, que fala de "humor e política na medida certa e às vezes na medida errada, já que o homem é a medida de todas as coisas."
Nossa que maravilha !!!Amo Clarice !!!Muito bom, muito bom mesmo ... Mil bjusssss
ResponderEliminarLinguagem simples e emblemática.Como Clarice.Perfeito...como fã (de ambos: blog e Clarice)pediria,se causar prazer, resenhar outros contos do Laços de Família no mês do nascimento da escritora.
ResponderEliminarObrigada professor, pela lembrança de Clarice.Obrigada Regina, pelo acolhimento.
Sensacional.